sábado, 10 de outubro de 2009

A PARABELLUM



Uma das primeiras famílias que conheci em Timor, mais propriamente em Dili onde fiquei colocado no meu serviço militar, foi uma das mais contestadas famílias de Timor.

O “Velho” pai, um acérrimo adversário político de Salazar, foi por isso mesmo mandado com bilhete de ida sem volta, para esta longínqua paragem, que nessa época e talvez como cópia do que a Inglaterra fizera com a Austrália, se tornou no Tarrafal dos políticos incómodos e assassinos perigosos.Em 1938, o então governador da Colónia dizia-se em situação difícil para manter 97 deportados e bastantes degredados europeus e chineses (telegrama do Governador para o Ministro das Colónias em Julho de 1938).
Um dos mais conhecidos desses degredados era o advogado Carlos Cal Brandão, deportado desde 1931, e autor do Livro "Funo" que conta um pouco da história de Timor durante a ocupação Japonesa.

Nessa família dizia eu, tornei-me bastante amigo de um dos filhos mais velhos, também de nome Manuel como o pai, que geria a plantação de café da família, no alto das montanhas de Liquiçá. Fui, desde o primeiro ano, convidado do Manuel para ir passar o tempo de Natal na frescura da sua plantação. Era, dizia ele, mais parecido com o clima do Natal na “metrópole”, e nessa altura toda a família "obrigatoriamente" se deslocava para lá.
Numa das muitas vezes que fui com ele montanha a cima, para desfrutar um pouco a diversidade do clima de Timor, aconteceu que ao fazer uma curva, a viatura conduzida pelo “Manel” se chegou de mais à berma da estrada e esta cedeu, e lá ficámos nós, com uma roda pendurada no abismo e as outras três mesmo à beira disso.
Saltei do carro e procurei salvar os meus haveres, que se encontravam na parte de trás da carrinha Nissan em que fazíamos a viagem, assim como outra bagagem mais perto e fácil de salvar, como a minha mochila e outros sacos e malas que se encontravam mais acessíveis.
Naquela aflição, o Manel encontrava-se bastante calmo ao volante do carro tocando a buzina repetidas vezes, começando então a surgir de dentro do mato que ladeava a estrada algumas pessoas para ajudar. Todos juntos com uns empurrões e umas acelerações, lá conseguimos pôr de novo a viatura na estrada.
O trabalho seguinte foi o de meter toda a bagagem de novo no carro e lá continuamos por uma estrada bastante perigosa que em alguns trechos diria que quase impraticável até à casa que ficava quase no coração da propriedade.
Se uma plantação "de café" era algo novo para mim, que só o conhecia já fumegante na chávena, a paisagem que se avistava nas traseiras daquele casarão, era estonteante, em grandeza, cor e beleza.
Dali avistava-se quase todo o vale da ribeira Lóis, as planícies de Godole e Saré, e ainda as montanhas onde estavam as plantações de Fatu Bessi, Ura Hou e o vale da ribeira Sui, que vem do vale da ribeira de Gleno.
Depois de descansarmos e de um almoço especial, demos uma volta, subindo e descendo íngremes caminhos até a uma pequena ribeira no seio da montanha onde pela primeira vez constatei a existência de pequenos camarões de água doce, a novecentos metros de altitude. Depois de uma pescaria bem animada, voltamos de novo desta vez trepando até a casa.
Estava mais que vencido pelo cansaço e emoções de um dia repleto de imprevistos, mas esse dia não tinha ainda terminado. Depois de um banho de água quente, o que em Timor não seria muito imaginável, sentámo-nos na varanda gozando um pouco o calmo entardecer em que a ausência dos mosquitos e o cheiro a húmus e à flor dos cafeeiros davam um cunho de paraíso. Esse
momento de paz e descanço foi no entanto quebrado quando chegou em frente da casa um velho timorense que transportava algo nas duas mãos como se fosse uma bandeja e grande foi o meu espanto quando reconheci a minha pistola Parabellum. Tinha-a trazido comigo, dentro da minha mochila. Ela caíra na estrada na altura em que eu tirara toda a bagagem para fora do carro.
A pistola tinha sido encontrada e as pessoas que tinham ajudado a empurrar o carro para este poder sair de posição em que se encontrava, logo discerniram que a pistola tinha que ser do “malae” que passara de manhã com o patrão “Manel”. Eu não tinha dado por falta dela, pois ainda não mexera na mochila, e desde que ela caíra até de novo voltar para o seu lugar dentro do saco, já iam mais de seis horas. Um bom susto.
Passados uns anos já no tempo do domínio Indonésio, eu e o meu amigo Manel no mesmo local onde isso acontecera, relembrando o passado, comentávamos esse acontecimento e a pergunta ficou a pairar “Se fosse hoje a pistola seria entregue?”A resposta mais provável seria:


- “Nunca mais ninguém a veria, seria mais uma arma na luta contra a Indonésia”


mco

in "Retalhos de uma vida em Timor"

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O carro Suzuki 500 e a Aqua Velva


Foi no mês de Fevereiro ou Março do ano de l975 que comprei a uma professora do Liceu de Dili, um automóvel de dois lugares com um motor a dois tempos, da marca Suzuki e com uma cilindrada de 500 c.c.. Era como se fosse uma motorizada toda fechada por uma bonita e bem desenhada carroçaria, de pintura metálica. Era o único carro desta marca em Dili e também o único que eu vi em toda a minha vida.


Com o Golpe anti-comunista de 11 de Agosto, tudo se modificou e ao deixar Dili em direcção a Atambua, onde fiquei uns meses como refugiado, tive que o abandonar, em frente de minha casa. Regressei a Dili no dia 1 de Janeiro de 1976, procurando família de quem não tínhamos notícias e por motivos imprevistos, não pude regressar a Atambua, como era a minha vontade.


Procurei no sítio onde tinha deixado o pequeno carro, mas nem rasto de pneus havia no chão, e pensei que tivera o mesmo destino de dezenas de viaturas que embarcaram nos barcos de transporte de tropas em direcção de Jakarta.


Um dia numa das ruas desertas de Dili, para meu espanto, vi a pequena viatura rolando, guiado por uma mulher Indonésia que estava a Administrar o Hotel Resende e o Hotel Dili, em nome dos Generais, tubarões do Exército Indonésio.


Desloquei-me então ao comando das forças Indonésias e onde fui recebido por um Major. Expliquei-lhe em Inglês aquilo que pretendia e o mesmo, mostrou-se compreensivo, mas comentou no seu péssimo Inglês, que a viatura estava requisitada para fins militares e que quando não precisassem dela a devolveriam. Insisti com ele de que eu precisava da viatura. Por fim fez-me uma proposta de venda. Dar-me-ia dois sacos de arroz (cerca de duzentos quilos) como pagamento pelo carro, mas vendo a minha indignação, para me acalmar prometeu ir falar com o Comandante e que depois me informava da decisão deste.


Convencido que ali não resolveria o problema a meu favor, resolvi fingir que aceitava a sua resolução e quando me despedi, o Major na intenção de me cativar disse:
- Gosta de vinho? – E continuou: - E que eu tenho ali vinho. Já bebi uma garrafa, mas francamente não gostei porque sabe mal. Se quiser eu ofereço-lhe.


Dito isto, entrou naquilo que me pareceu ser o seu quarto e voltou com uma caixa com doze garrafas de Aqua Velva azul, onde letras pequenas por debaixo do nome do produto diziam “After shave”. Como numa pequena vingança, em nome da minha frustração, respondi:
- Você não gosta? Eu quero, dê cá. Mas olhe que este vinho é um dos melhores do mundo e muito caro. – O bom do Major quando ouviu dizer que era muito caro, rapidamente voltou a trás com a oferta e pôs a caixa de Aqua Velva, de novo, a salvo dentro do seu quarto. Nesses momentos eu aproveitei para dizer, enquanto saia rapidamente do seu gabinete:


- Continue bebendo que um dia há-de gostar.


mco

in "retalhos de uma vida em Timor"

quinta-feira, 30 de julho de 2009

UMA PESCARIA EM UÉ SUSSUK


O local foi limpo e foram feitas pequenas barracas de bambu, cobertas de folhas de coqueiro, que fechavam também as paredes. Dentro desses pequenos quartos fizeram um lantém, cama, em bambu aberto e espalmado, onde se podia descansar e dormir à noite. Foram feitos dez quartos desses dentro da mata e mesmo na beira da lagoa e esse local escondido, só encontrava quem entrasse dentro do arvoredo. João limpou a sua barraca da lua-de-mel, a uns cem metros do local e onde ele tencionava ficar com Catarina. Depois de tudo estar pronto, na noite anterior João e mais alguns homens foram caçar veados e porcos-bravos, mas a carne teve que ser seca ao sol da praia, pois que o peixe encontrado, não deixava lugar a que a carne fosse consumida. Depois da chegada dos convidados que foram divididos pelas casinhas, começou a abertura da água do coilão. Os homens cavaram um cano perto do lago e quando a água começou a abrir sozinha, caminho em direcção do mar, todos se afastaram para longe, deixando que a força da água que se encontrava aprisionada empurrasse para o oceano toda a areia que se opunha à sua libertação. A enxurrada do líquido represado tornou num canal de quase cinco metros de largura, o que fora um pequeno cano da largura de uma enxada.
O estrondo do rebentar da areia, foi semelhante ao tiro de um canhão e a água saltou, levando com ela toneladas de areia, enquanto se misturava em espuma, com areia e lama, deixando um rasto da cor de café com leite, nas límpidas águas do Taci mane. Estava aberta a lagoa, e em seguida seria a pescaria.

Nos requebros da mítica Timorense nada do que tinha sido feito, ou seja a abertura do coilão e a subsequente apanha de peixe e outros crustáceos, seria possível, se na noite anterior, o Liurai de Alas, sozinho, na areia, entre as águas do mar e as do lago, não tivesse evocado os antepassados e os ancestrais avós representados no presente pelo crocodilo, pedindo-lhes que eles não tapassem a passagem e deixasse que a água do lago escoasse para o mar. Nessa noite afirmavam, os crocodilos grandes tinham saído a coberto do negrume e tinham desaparecido nas águas do oceano. Os poucos que tinham ficado eram ainda ineptos para afrontarem, as profundas e traiçoeiras águas do mar, mas ainda capazes de serem os guardiões das águas daquele coilão. De manhã, depois de a água ter saído para a imensidão do oceano, o Liurai com pecíolos da folha da palapeira em forma de pulseira, nos pés e nas mãos e também a fazer de cinto, entra na água da lagoa e vai Hamulak, rezando e explicando ao avô Lafaek que segundo o tratado entre os seus maiores, o povo não o atacará, como ele não poderá atacar o povo e o Liurai vai andando sempre, muito devagar, até chegar ao meio do coilão com água pelo peito. Aí pára e depois de breves instantes, sempre rezando, segue até ao outro lado da lagoa, de onde volta sempre a rezar para o sítio de onde partiu. Chegar ao fim são e salvo, quer dizer que as suas rezas foram aceites pelos “Avós” e então todo o povo especialmente as mulheres entram nas águas com os tais presos na cintura com um cinto de folha de palapeira, e os seios desnudos e nas mãos o dahir, rede de apanhar camarão, que é uma rede cónica fechada na base, colocada numa armação de madeira ou cana dobrada em forma de círculo. As mulheres agarram a rede com as duas mãos e usam-no, fazendo o suru boek, que quer dizer tirar o camarão da água, enquanto os homens usam o dai, tarrafa, que é uma rede maior e com chumbos nas pontas e de forma circular, que é lançada, aprisionando os peixes.

Catarina ficou estupefacta, quando viu o Liurai de Alas dentro de água e se lembrou dos crocodilos que vira em Ira Bere. Ainda que tivesse visto que nada acontecia, quando as outras mulheres a chamaram para ir com elas, Catarina preferiu ficar com o marido. De vez em quando alguma mulher dava um grito, notando-se de seguida uma turbulência nas águas. João explicou-lhe que aquele agitar das águas tinha sido feita pela passagem de um crocodilo que se encontrava escondido na lama e que fora pisado pela mulher. Mesmo assim Catarina abanava a cabeça, não acreditando no tal acordo entre o Povo de Timor e os crocodilos, nem que o lafaek fosse o avô ancestral do Timorense. Dois dias foram aproveitados pelo povo para secar no sol escaldante da praia o peixe pescado, que durante bastante tempo seria mais uma fonte de proteínas para todos. A pescaria fora um sucesso e mais uma vez se confirmava que o avô lafaek respeitava o antigo acordo feito entre os seus ancestrais e os antepassados dos habitantes de Timor.


mco

in "Timor na senda do mítico"

segunda-feira, 27 de julho de 2009

UMA LUTA ÉPICA E IMORTAL


Ao entardecer avistamos em baixo a povoação que estava toda queimada. Os meus dois tios apareceram para nos acompanhar. No meio do mato, começaram a aparecer corpos caídos cheios de sangue, de homens, mulheres e crianças. Os mais velhos faziam o possível para taparem dos nossos olhos, de todo aquele espectáculo de barbárie. Corpos retalhados de crianças como nós, jaziam pelo chão em grotescas posições, qual dança macabra num inferno de Dante. Ao entramos na povoação agora reduzida a cinzas, choros e gemidos, misturavam-se com o uivar dos cães num entardecer demoníaco. As mulheres perante este quadro de miséria e destruição abraçavam-nos chorando, com que querendo esconder dos nossos horrorizados pequenos olhos toda esta desgraça. Não sei dizer ao certo quantos mortos estariam naquele local, mas seriam certamente algumas dezenas.
Os homens encaminharam-nos para fora deste pesadelo, montanha abaixo na direcção da ribeira de “Cumain”.
Descemos sem ver o caminho a pique, como se este fosse plano e sem obstáculos, descemos até parar dentro de água e aí caímos sem forcas nem vontade de abrimos os olhos que tinham vindo fechados desde cima.
Todos chorávamos de raiva e frustração. O meu coração batia desenfreadamente, numa vão tentativa de sair pela boca. A pouco e pouco a água fria e turva da ribeira, foi-nos acalmando e então o medo, o verdadeiro e horrível medo, penetrou-me até à alma. Ainda hoje guardo na mente, esse bacanal de morte e destruição.
Os tios e avós foram-nos aquietando e levaram-nos para umas grutas feitas nas rochas – Fatuk Ku’ak – que estavam escondidas por uma vegetação espessa. A entrada era uma fresta na rocha, não sendo visível de parte exterior, porque estava muito bem camuflada.
Eram duas grutas grandes, onde a temperatura era menos agreste que no exterior e onde encontramos pela primeira vez, depois de algumas noites a dormir dentro de agua, um chão seco para podermos descansar. As mulheres preparam o local, para ser o mais cómodo possível e os homens montaram guarda lá fora.






A noite decorreu cheia de sonhos agitados, em que tudo se confundia num torvelinho de cheiro de sangue, cabeças e pés levados pelos ventos numa enorme angústia e desespero, quando acordamos, acordamos quentes e com fome. Os homens, ainda de madrugada tinham partido, subindo de novo a montanha, com a missão de enterrar os mortos. Não podíamos fazer barulho nem sequer sair para fora da gruta.
Um dia de descanso foi uma bênção para as nossas pernas e pés. A minha irmã Amena fez-me um curativo com mezinhas caseiras, feitas à base de folhas trituradas e “ai Kulit” - cascas de árvores – e eu senti-me muito melhor. A minha mãe, continuava muito doente, cheia de febre e com muitas dores, que a obrigavam a levar as noites sem dormir e a delirar. Eu passei a ficar junto dela, assim como a avó. Ela que antigamente era tão alegre, agora estava sempre triste, pouco falava e chorava às escondidas.
Estivemos escondidos nesta gruta, muito tempo, julgo que quase duas semanas. Só à noite podíamos sair sempre em pequenos grupos acompanhados pelas mulheres e aproveitávamos para tomar banho na ribeira, mas sempre em silêncio.
Os tiros que se ouviam ao longo começaram a rarear, assim com o bombardeamento feito sobre Aileu. O meu avô, resolveu que seria altura de nos deslocarmos deste local para as montanhas de Turiscai, onde, pensava ele, estaríamos mais seguros.
Um dia, depois de quase duas semanas de descanso, foi quase com alegria, que os miúdos saíram para fora da toca, para uma nova caminhada. O tempo continuava chuvoso, mas agora o sol de vez em quando, teimosamente rompia a cerrada neblina, numa tentativa de aquecer, com os seus raios luminosos a natureza enregelada. Começámos a andar na direcção da nascente da ribeira de Cumain, sempre dentro do mato e com mais precaução do que antes. O caminho era sempre subir e nós progredíamos muito devagar porque não andávamos por caminhos feitos, mas a corta-mato.



mco

in "A história de uma menina de Timor ou como Bui Terssa descobriu o mundo"

sábado, 11 de julho de 2009

MORREU O IMPERADOR DO MUNDO


Noutros tempos e sítios, que nunca mais estarão para ele e para mim, disponíveis para os podermos saborear, dizia ele em ar de bazófia “ Hei-de ser o Imperador do Mundo”. Era só prosápia pois que ele nunca foi Imperador do Mundo, mas foi aquilo que é muito difícil de ser em situações como as que ele enfrentou, um HOMEM.

Com ele terminaram os Manueis Carrascalões, pois que o era seu pai, já falecido, o foi seu filho, assassinado ainda menino-HOMEM, tirando-lhe o lugar na vingança sanhuda das drogadas milícias Indonésias.

Por ironia do destino, ele que sempre viveu no limite do perigo, morreu na cama de um hospital por motivos de saúde e idade.

Não era meu irmão, mas meu irmão foi. Aliás ele era irmão de todos os que dele necessitavam. Político clarividente e astuto, movia-se nos meandros da política com o saber que lhe vinha da experiência e do ADN da sua existência de mistura de activista anti-Salazar, de seu pai, e do instinto político-nato que todo o Timorense tem, de sua mãe.

Que mais posso escrever?
Se escrever a verdade serei severamente criticado por todos aqueles que o não conheciam. O nome Carrascalão sempre teve um estigma. Antes de conhecer a pessoa, Manuel Carrascalão, pai, já tinha ouvido a história de ele ser um “bombista”. A má fama tinha sido criada por invejas de adversários políticos, e não só, desde que o velho Manuel, pai, fora nomeado presidente da Câmara Municipal de Dili e enveredara no caminho da política local. Na realidade o Manuel Viegas Carrascalão, pai, foi em Portugal secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho, fundador da maioria dos sindicatos existentes em Portugal e deportado para Timor por Salazar, por ser anarco-sindicalista.
Em Timor fundou a Associação Comercial e Industrial de Timor, o que lhe trouxe mais inimizades. Mais tarde, quando depois do 25 de Abril, os filhos enveredaram também pela política formando a União Democrática Timorense, os inimigos políticos que agora já eram Timorenses, aproveitam a nódoa que tinha sido derramada por invejas sobre o seu nome, para criarem slogans como “latifundiários” “colonialistas”etc. etc.

Manuel Carrascalão, filho foi a cima de tudo um HOMEM valente. Sempre disse na cara dos Indonésios, especialmente dos tubarões, aquilo que pensava e dizia-o alto e em bom som, em frente de todos. As vezes que afrontou os altos poderes militares Indonésios, valeu-lhe a morte de seu filho, e de dezenas de refugiados que tinha no seu quintal em Dili.

Entre outros casos em que afrontou o poder militar do opressor, sem armas, foi quando três generais se deslocaram de Jakarta a Dili, para o acalmar por causa da morte de alguns Timorenses que eram seus trabalhadores, ele respondeu-lhes:

- “Vocês tratam-nos por “Saudara” irmão, mas é tudo mentira. Vocês são Islames e rezam antes de matarem um animal para comerem, mas para matarem um Saudara Timorense, nem depois de ele morto, vocês rezam”.

Ele já foi. Boa Viagem irmão, dá por mim, um abraço ao Manelito.

mco

domingo, 5 de julho de 2009

RAIN NA'IN

As montanhas e as planícies de Timor estão cheias de seres invisíveis para a maioria dos mortais, e esses entes influenciam definitivamente a vida dos Timorenses, fazendo parte do mítico que envolve toda esta ilha encantada.
Esses seres invisíveis que tem o nome de Rai Na’in, são os espíritos donos da terra que tanto se encontram nas árvores seculares que povoam a ilha, como em animais ou pedras e são respeitados e muitas vezes adorados pelo povo simples e ainda animista.
A presença dos “Rai Na’in” nas hortas e campos de cultivo de arroz são uma realidade do quotidiano na vida do agricultor Timorense. Estes espíritos que podem ser bons e maus são homenageados com dádivas pelos camponeses, donos das hortas e várzeas, no intuito de obterem boas colheitas, e no fim da safra como agradecimento pelas benesses recebidas.

São estes Rai Na’in que vivem nas profundezas das florestas e especialmente naquelas mais impenetráveis onde se escondem, que encarnam animais e povoam as árvores centenárias de grandes dimensões, cujas lianas caindo para o chão com a aparência de longos cabelos, nos dão a sensação de que essas árvores são mesmo moradia desses seres.
Se os agricultores estão estritamente ligados a estes espíritos, que se pode esperar dos caçadores cujas vidas são passadas no meio das florestas, onde caçam especialmente durante as noites escuras? Os animais selvagens saem dos seus esconderijos nessas noites para procurarem o alimento que não podem ter durante o dia. E é nessa escuridão que os caçadores se deslocam pé ante pé, procurando surpreendê-los com as suas flechas ou as suas azagaias.


Dizem as lendas que em noites de lua cheia os Rai Na'in que encarnam os animais selvagens dançam o tebe, dança tradicional de Timor, em locais para eles sagrados e só ao nascer do sol, tomam de novo a forma desses animais e se despedem até a nova noite de luar.




mco


"in Timor na senda do mítico"

JOÃO MALI, O CAÇADOR

A história do caçador João Mali que o livro TIMOR NA SENDA DO MÍTICO descreve, é um ensaio feito pelo autor, no campo fascinante da vida Timorense, seus mitos e temores.
Nele se retrata, além da paisagem de algumas das mais típicas e potencialmente ricas regiões deste país, a simplicidade diária da vida do povo, que por vezes se torna numa complexidade bem camuflada.
A referência a uma dos mais prementes problemas actuais, a defesa do meio ambiente e do ecossistema, representado pelo Bé Na’in da lagoa de Modo Mahut, que na realidade existe, aliás como felizmente, muitos outros espalhados por esse Timor fora, demonstra bem que muito antes de ao nível Mundial e global esses palavrões tomassem forma, já a organização tradicional da sociedade Timorense dedicava a esses problemas a sua atenção.
A crendice de que se matarmos a tuna, enguia, que existe numa nascente de água faz secar essa nascente, ainda que pareça mentira, é uma verdade incontestada em Timor.
A Lenda de que o crocodilo é o avô do Timorense, é uma outra história que nos faz pensar.
Quando se realizam pescarias em zonas infestadas por estes sáurios e depois das rezas dos Bé-Nain, onde é lembrada a aliança feita em tempos imemoriais (lenda) entre o povo de Timor e os crocodilos, o povo entra nessas lagoas a pescar não sendo atacados, são bem o exemplo da simplicidade e complexidade do mítico Timorense.
Se já conhece Timor, ou se por acaso ainda não conhece, o livro “TIMOR NA SENDA DO MÍTICO”, será uma maneira de recordar aquilo que sabe, ou de se envolver na vida quotidiana desse povo, aprendendo a amá-lo e a respeitá-lo.

Mau Lear

domingo, 7 de junho de 2009

Akam e a gasolina

Nos primeiros tempos de 1976 em Dili, tudo escasseava, desde os alimentos a outros produtos que não sendo de certo modo de primeira necessidade, eram aqueles que poderiam fazer a vida andar mais para a frente vencendo a feição de impasse que a guerra trouxera ao país. A gasolina era um desses produtos. Ela era estritamente militar, e se não fosse a corrupção existente na organização daquela instituição a história de Timor, seria hoje, porventura, um pouco diferente.


Depois deste pequeno intróito, devo explicar, para poder continuar a história, quem era o Akam. Não sei ao certo o seu verdadeiro nome, mas era indivíduo chinês proveniente talvez de Macau, que tinha por profissão mecânico, e já no tempo da Administração Portuguesa, apesar do Exército Português ter uma oficina para os carros militares, muitos eram os que reparavam as suas mazelas na Oficina que tinham o nome de Akam. O seu trabalho fizera a sua oficina prosperar e o seu nome ser conhecido como um bom mecânico.



A sua oficina tinha ficado “limpa” de tudo o que fossem meios que permitissem trabalhos de mecânico, chaves, dezenas delas como de todo o género de ferramentas tinham desaparecido, mas atrás dessas aves de rapina que aproveitaram o saque inicial vieram os grandes interesses, na forma de algum Coronel ou General que logo propunham imunidade como forma de uma sociedade, onde eles sócios, pudessem no futuro ter lucros sem empate de capital e sem trabalho.



Akam era flexível, esperto e trabalhador, estas três qualidades fizeram-no renascer das cinzas que tinham ficado do primeiro choque, e em breve se tornava de novo num elemento muito necessário a todos os que tinham viaturas.


Gasolina, ele sempre tinha alguma para “desenrascar” os “amigos”. De onde ela vinha era mistério. Mas se os grandes tinham meios de esmifrarem umas rupias, os mais pequenos, usavam de um pouco de mais inteligência, por terem menos poder.
Um dia de manhã estava eu na oficina do Akam, onde fui atestar de gasolina “mistério” o pequeno “Mini-Moke” que fazia o trabalho de abastecimento do Hotel Turismo, quando um camião do Exército entrou no espaço da oficina e dois militares procuraram o pequeno chinês e o levaram para o seu gabinete. Depois de largo tempo a discutirem eles saíram contando um maço de notas e fizeram sinal a dois militares que se encontravam em cima do carro para descarregarem uns dez ou doze bidões que se via serem de gasolina. Depois do trabalho feito o carro desapareceu rua fora. O Akam tinha mais um carregamento de combustível “mistério”.


Ainda o pessoal da oficina não tinha começado a arrumar os bidões de gasolina, nem a viatura que vendera o combustível teria chegado ao fim da rua, já um Jeep da Polícia Militar entrava no recinto seguido por um camião vazio. Só as boinas eram diferentes. Umas azuis da P.M. e outras castanhas dos vendedores. Os militares do camião, sem uma palavra sequer, começaram a meter de novo os bidões de gasolina dentro da viatura. O espoliado Akam bem protestava de que ele tinha comprado a gasolina, mas a posição dos Polícias Militares era inflexível: “Esta gasolina é da tropa e não pode ser vendida! Se quer o dinheiro de volta vá pedi-lo a quem lha vendeu ” e sem mais lá foram, vender de novo o combustível “mistério” para outro qualquer, que caísse na esparrela.






"in retalhos de uma vida em Timor"

mco

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Bei Kassa e o Lafaek-assu


Por meados do ano de l970, alguém me disse um pouco a medo: - Na planície mora um velho caçador de crocodilos que o pode ajudar a resolver o problema. Com ele o bicho mais bravo nem se mexe. O senhor possivelmente não acredita, mas mande-o chamar!
O velho veio. Era muito baixo e bastante velho com as pernas arqueadas todas marcadas de profundas cicatrizes de dentes de crocodilo, notava-se que tinha sido abocanhado pelo menos umas quatro vezes, e os dentes marcados na sua carne eram muito maiores que os dentes do pequeno Lafaek-assu. Era natural de Viqueque, mas morava havia muito tempo na planície de Fatu Berliu. Chamava-se Bei Kassa e depois de ver o animal, sorriu e pediu uma corda.
O animal estava deitado fora da água perto de uma pequena árvore, parecia dormir. Bei Kassa segurou na corda de prender cavalos e entrou na cerca. Eu queria acreditar de que, o lógico iria acontecer, ou seja o ataque do réptil, mas ele continuava dormindo de olhos fechados ignorando pura e simplesmente a entrada na sua área de um intruso. Bei Kassa pôs-se de cócoras mesmo ao lado do feroz crocodilo, e este nem os olhos abriu. Então o velho fez o impensável, fez cócegas debaixo do braço do animal e este esticou-o deixando um espaço entre o corpo e o chão. Nesse espaço o velho caçador enfiou uma ponta da corda que levava consigo, e deixou que o corpo baixasse de novo com a corda colocada por de baixo dele. Seguidamente repetiu o feito do outro lado. De novo as cócegas fizeram o braço se esticar, funcionando como um macaco mecânico, e levantando o corpo do outro lado. Depois foi fácil, ele meteu a mão por debaixo do corpo do animal e puxou a ponta da corda que já lá se encontrava e atou-a por cima da cabeça do animal, da mesma maneira como se prende um cão, e a outra ponta atou-a solidamente à arvore e depois saiu do recinto sem que o animal desse mostras de ter acordado.
Eu estava incrédulo! Tinha visto durante uma série de vezes ele atacar com raiva quem se atrevia tentar entrar naquele espaço, como se percebesse que era um campo só dele e desta vez nem acordara. O velho disse que o pessoal que ia limpar o tanque já podia entrar, e os dois homens que esperavam para fazerem a limpeza entraram. Foi a corda que prendia o animal que evitou o ataque furioso do bicho. Bei Kassa entrou de novo e o crocodilo ficou de novo calmo e deitado como se dormisse. Depois de tudo limpo e de ter sido posto um tampão que podia ser aberto por meio de uma corda os homens saíram e Bei Kassa tirou a corda que segurava o animal saindo do local. Quando o velho caçador já estava longe o crocodilo deu um salto e desapareceu dentro de água, de onde não saiu durante dois dias.
Em conversa como velho caçador tentei perceber o que se passara e ele disse-me que possuía um segredo que vinha do seu avô e que quando ficava perto desses animais eles ficavam com medo dele.
Todas as vezes que tinha sido atacado, isso acontecera porque os crocodilos que o tinham atacado eram crocodilos que tinham vindo do mar, de fora de Timor e que mesmo assim o morderam e depois fugiram sem o matar. Em primeiro lugar não podemos ter medo pois os animais detectar logo isso, depois existem folhas e frutos com poderes mágicos que os fazem recuar. Dissera-lhe seu avô que quando os povos de Timor tinham feito o acordo de respeito mútuo e de não agressão entre eles e os crocodilos, a quem o povo trata por Bei, avô, tinham comido juntos, certos frutos e folhas para selarem esse acordo. E continuou: - Se nós usarmos esses frutos e folhas, eles lembram-se do acordo e não nos atacam.
Não podia acreditar na última parte da lenda dos crocodilos e do povo de Timor, mas aquilo que eu tinha visto teria de ter uma explicação. Disse-lhe então que todas as vezes que fosse preciso limpar o tanque eu teria de o chamar. Ficou calado, talvez pensando na chatice que isso era e depois de algum tempo disse-me: - Eu volto cá no próximo bazar, (ou seja no Domingo seguinte) e depois resolvemos o problema.
Ele cumpriu o prometido, encontrei-o do mercado e ele trouxe um embrulho feito de folhas de bananeira. Mais tarde perto do local do tanque onde o crocodilo apanhava sol ele disse-me que me trouxera um fruto e algumas folhas que fariam o Lafaek ficar sossegado. Como viu a descrença na minha cara, ele entregou-me o embrulho e aproximou-se do local onde o crocodilo se encontrava, e quando este o ia atacar ele saiu de novo. Disse-me então para eu lhe entregar o embrulho. Com ele na mão entrou de novo dentro da cerca e o animal nem se mexeu. Depois disse-me para eu entrar com o embrulho e também desta vez o crocodilo fechou os olhos e fingiu dormir. Bei Kassa disse então: - Sem medo faça cócegas debaixo do braço. – Era para ele era fácil dizer. Dominando-me fiz o que ele disse e de novo o animal levantou o corpo por ter estendido o braço. Convencido saí e guardei o que ele me tinha trazido, ouvindo a última recomendação dele: - Não dê, nem mostre isso a ninguém!
Depois disto nunca mais o vi.




"in Retalhos de uma vida em Timor"
mco

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Macau de 1966


Chegámos a Hong Kong já o sol tinha baixado no Horizonte. A confusão de luzes fixas e aquelas que acendiam e apagavam estimulam um ambiente de antagonismo. Os milhentos luzeiros coloridos, de anúncios e outros, que fazem daquele lugar um presépio, espalham-se montanha acima, reflectindo-se nas águas escuras da baía num espectáculo, talvez único no mundo. Os anúncios de cores berrantes onde o vermelho sobressai, parecem pregados num fundo negro que só de dia sabemos ser uma montanha. Por outro lado, se os nossos sentidos visuais conseguem abranger de uma forma geral tudo o que nos rodeia, o nosso cérebro dificilmente cataloga essa miscelânea que por serem cores, nos confundem e que por serem luzes nos atraem. Ali fiquei na amurada do barco, no meio da escuridão olhando extasiado aquela explosão de luz e cor que me encandeava e me não deixava descansar. Que se passaria para lá daquela cortina de luz? E a minha mente perversa soltava-se e deleitava-se pensando em mulheres de olhos de amêndoa dançando com os seus longos vestidos de seda natural, que as tapavam até ao pescoço, mas cujas rachas deixavam em liberdade as suas longas e sensuais pernas.
De manhã acordei com o barco a deslocar-se suavemente. Saí do meu camarote, na esperança de novo desfrutar algo de diferente. Na verdade tudo era novo para mim e desde os juncos que atravessavam a baía num tráfico caótico até à cor das águas do porto que se me não falha a memória era o Victoria Harbour, tudo era diferente da noite anterior. Toda a magia das luzes tinha desaparecido, e no seu lugar uma névoa cobria a manhã desta cidade. O paquete deslocava-se muito lentamente, naquela água cor de café com leite, por entre toda esta discrepância, do ontem e do hoje, da noite e do dia, indiferente aos sentimentos dos novatos que não compreendem que de noite “todos os gatos são pardos” e se admiram quando de dia os encontram com cores diferentes.
O Oriente ali estava em tudo o seu esplendor. Um mar juncado (acho que a palavra vem do nome dos barcos) de Juncos e outras pequenas embarcações que servem de habitação a uma multidão que ali nasce e cresce multiplica-se e morre. Esta é verdadeiramente uma população flutuante, primeiro porque em qualquer altura se deslocam para outras paragens e segundo porque flutuam sobre as águas do cais.
Por entre ilhotas cujas costas caíam abruptamente sobre o mar, forradas de um luminoso verde, relva de jardim e no espaço de pouco mais de uma hora, chegámos a Macau. A travessia do estuário do rio das Pérolas a que também dão o nome de Mar Lingdingyang faz a ligação entre Macau e Hong Kong que se situam nas extremidades opostas deste delta. O nome dado pelos Portugueses a este Território foi o de Cidade do Nome de Deus, mas se este não perdurou. A deturpação do nome de uma Deusa Chinesa cujo templo se encontrava virado para a Baía definiu para sempre o nome da cidade. O templo da Deusa A-MÁ que se encontra na baía, GAO em chinês, terá dado o nome de A-MÀ GAO (a baía de A-MÁ) que terá evoluído para o nome de Macau. Em todo este percurso através dum emaranhado de ilhas cruzámo-nos com ferries que fazem o transporte de passageiros de Macau para Hong Kong e os rápidos Jet-foils ou hidrofoils que em vinte minutos fazem uma travessia que outro barco qualquer fará em nunca menos uma hora.
in "retalhos de uma vida em Timor"
mco

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A HISTÓRIA DE UMA MENINA DE TIMOR OU COMO BUI TERSSA DESCOBRIU O MUNDO


A pedido do autor dá-se conhecimento da publicação do livro com um tema sobre TIMOR que é a história de Bui Terssa “Uma menina de Timor” igual a tantas outras, que viveram e morreram durante a ocupação Indonésia. Algumas delas como a Bui Terssa puderam sobreviver para contarem as suas aventuras, apesar de todo o sofrimento e tortura por que passaram. Outras, como as suas irmãs, nunca mais voltaram. Os testemunhos de sofrimentos e ultrajes a que foram submetidas e as suas tristes histórias perderam-se na névoa do ignoto. Prefácio de Xanana Gusmão.

Publish Date April 26, 2009 08:54 PDT
Dimensions
B/W Text 174 pgs
Category
Romance
Tags

quarta-feira, 15 de abril de 2009

João Mali o caçador

Enquanto a sua casa não estivera pronta, João e o tio tinham ficado em casa do Liurai. Aí ele já notara os olhares incendiados da rapariga, mas ele sempre evitara qualquer contacto, pois que apesar de ela ser bonita, ele não queria problemas e tinha mais duas razões para isso. A primeira era a imagem de Maria que ainda não lhe saíra do pensamento, a segunda era aquilo que o Liurai lhe tinha dito de o considerar como se um filho fosse. O tio sempre atento, tinha compreendido tudo desde o começo e antes de voltar, recomendou-lhe cuidado com o que poderia acontecer, se ele não evitasse problemas com a Mariana.
Uns dois dias depois de Lei Cassa ter regressado para a sua casa, João dormia, ainda o sol não aquecia o orvalho da noite, e os galos cantavam a medo, com voz de cana rachada. Mariana chegou com um prato de koirambo, um doce Timorense feito de farinha de arroz, e muito apreciado mas de difícil confecção. A moça chegou, espreitou pela janela do quarto onde João dormia e empurrou a porta que nunca estava fechada, penetrando dentro da casa. João acordou, o que acontecia quando algum barulho fora do normal e ínfimo que fosse, acontecesse, mas fingiu dormir, pois calculou quem fosse. A esperança dele era que ela regressasse sem tentar qualquer aproximação, mas isso foi apenas uma esperança gorada nos minutos seguintes.

Mariana entrou no quarto de João, com a mansidão de uma borboleta a esvoaçar, sem barulho, como se os pés agora descalços, não tocassem o chão. O seu coração batia acelerado, pois o sangue que fervia nas suas veias parecia querer sair das próprias veias e transvazar palpitante pelo seu peito apaixonado. Ela nunca pensara que um dia teria coragem de ser ela a querer entregar-se de alma e coração a alguém. Por uma pequena fresta do olho que mantinha fechado, João, viu Mariana tirar a blusa que trazia vestida e percebeu tudo o que se passava, na sua mente, a próxima fase seria tirar a lipa, que é um pano que se enrolado em volta da cintura e que faz de saia, deitando-se de seguida na cama.
João sabia o resto da história de cor e ele não queria problemas. Pensou rápido. Saltou da cama com uma faca que estivera oculta debaixo do chumaço, na mão. O grito que saiu da sua garganta faria gelar de medo qualquer ser humano e quebraria a valentia de qualquer atacante feroz. Mariana deu um passo à retaguarda. O seu rosto inicialmente vermelho de excitação, tornou-se em segundos branco como a cal, e o seu coração quase parou de terror.
Num ápice, João que saltara para o chão, já estava de novo em pé em cima da cama, olhando com aspecto de doido em direcção de Mariana. Esta agarrou na blusa, que tinha deitado para chão e saiu disparada porta fora, saltou os três degraus da escada e perdeu-se no meio do capim que ladeava o caminho para sua casa. João teve pena dela, mas principalmente teve pena dele próprio por não poder fugir à maldição que tinha caído sobre ele e que fazia com que as raparigas fizessem dele não o conquistador, mas o ente a ser conquistado.
Nessa manhã João preparou, alguma carne seca e batar uut, que é o milho feito em pó depois de ter sido torrado e que muitas vezes se mistura com amendoim ou coco também ralado. Este preparado é tradicionalmente o farnel de viagem do Timorense, juntou-lhe o koirambo que a Mariana tinha trazido, meteu alguns bens mais necessários no kohe, género de saco, feito com a urdidura da folha de palapeira seca, aprontou também as suas armas de caça, soltou o outro cavalo e saiu com a ideia de só voltar daí a uma semana.
"in Timor na senda do mítico"
mco