domingo, 7 de junho de 2009

Akam e a gasolina

Nos primeiros tempos de 1976 em Dili, tudo escasseava, desde os alimentos a outros produtos que não sendo de certo modo de primeira necessidade, eram aqueles que poderiam fazer a vida andar mais para a frente vencendo a feição de impasse que a guerra trouxera ao país. A gasolina era um desses produtos. Ela era estritamente militar, e se não fosse a corrupção existente na organização daquela instituição a história de Timor, seria hoje, porventura, um pouco diferente.


Depois deste pequeno intróito, devo explicar, para poder continuar a história, quem era o Akam. Não sei ao certo o seu verdadeiro nome, mas era indivíduo chinês proveniente talvez de Macau, que tinha por profissão mecânico, e já no tempo da Administração Portuguesa, apesar do Exército Português ter uma oficina para os carros militares, muitos eram os que reparavam as suas mazelas na Oficina que tinham o nome de Akam. O seu trabalho fizera a sua oficina prosperar e o seu nome ser conhecido como um bom mecânico.



A sua oficina tinha ficado “limpa” de tudo o que fossem meios que permitissem trabalhos de mecânico, chaves, dezenas delas como de todo o género de ferramentas tinham desaparecido, mas atrás dessas aves de rapina que aproveitaram o saque inicial vieram os grandes interesses, na forma de algum Coronel ou General que logo propunham imunidade como forma de uma sociedade, onde eles sócios, pudessem no futuro ter lucros sem empate de capital e sem trabalho.



Akam era flexível, esperto e trabalhador, estas três qualidades fizeram-no renascer das cinzas que tinham ficado do primeiro choque, e em breve se tornava de novo num elemento muito necessário a todos os que tinham viaturas.


Gasolina, ele sempre tinha alguma para “desenrascar” os “amigos”. De onde ela vinha era mistério. Mas se os grandes tinham meios de esmifrarem umas rupias, os mais pequenos, usavam de um pouco de mais inteligência, por terem menos poder.
Um dia de manhã estava eu na oficina do Akam, onde fui atestar de gasolina “mistério” o pequeno “Mini-Moke” que fazia o trabalho de abastecimento do Hotel Turismo, quando um camião do Exército entrou no espaço da oficina e dois militares procuraram o pequeno chinês e o levaram para o seu gabinete. Depois de largo tempo a discutirem eles saíram contando um maço de notas e fizeram sinal a dois militares que se encontravam em cima do carro para descarregarem uns dez ou doze bidões que se via serem de gasolina. Depois do trabalho feito o carro desapareceu rua fora. O Akam tinha mais um carregamento de combustível “mistério”.


Ainda o pessoal da oficina não tinha começado a arrumar os bidões de gasolina, nem a viatura que vendera o combustível teria chegado ao fim da rua, já um Jeep da Polícia Militar entrava no recinto seguido por um camião vazio. Só as boinas eram diferentes. Umas azuis da P.M. e outras castanhas dos vendedores. Os militares do camião, sem uma palavra sequer, começaram a meter de novo os bidões de gasolina dentro da viatura. O espoliado Akam bem protestava de que ele tinha comprado a gasolina, mas a posição dos Polícias Militares era inflexível: “Esta gasolina é da tropa e não pode ser vendida! Se quer o dinheiro de volta vá pedi-lo a quem lha vendeu ” e sem mais lá foram, vender de novo o combustível “mistério” para outro qualquer, que caísse na esparrela.






"in retalhos de uma vida em Timor"

mco

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Bei Kassa e o Lafaek-assu


Por meados do ano de l970, alguém me disse um pouco a medo: - Na planície mora um velho caçador de crocodilos que o pode ajudar a resolver o problema. Com ele o bicho mais bravo nem se mexe. O senhor possivelmente não acredita, mas mande-o chamar!
O velho veio. Era muito baixo e bastante velho com as pernas arqueadas todas marcadas de profundas cicatrizes de dentes de crocodilo, notava-se que tinha sido abocanhado pelo menos umas quatro vezes, e os dentes marcados na sua carne eram muito maiores que os dentes do pequeno Lafaek-assu. Era natural de Viqueque, mas morava havia muito tempo na planície de Fatu Berliu. Chamava-se Bei Kassa e depois de ver o animal, sorriu e pediu uma corda.
O animal estava deitado fora da água perto de uma pequena árvore, parecia dormir. Bei Kassa segurou na corda de prender cavalos e entrou na cerca. Eu queria acreditar de que, o lógico iria acontecer, ou seja o ataque do réptil, mas ele continuava dormindo de olhos fechados ignorando pura e simplesmente a entrada na sua área de um intruso. Bei Kassa pôs-se de cócoras mesmo ao lado do feroz crocodilo, e este nem os olhos abriu. Então o velho fez o impensável, fez cócegas debaixo do braço do animal e este esticou-o deixando um espaço entre o corpo e o chão. Nesse espaço o velho caçador enfiou uma ponta da corda que levava consigo, e deixou que o corpo baixasse de novo com a corda colocada por de baixo dele. Seguidamente repetiu o feito do outro lado. De novo as cócegas fizeram o braço se esticar, funcionando como um macaco mecânico, e levantando o corpo do outro lado. Depois foi fácil, ele meteu a mão por debaixo do corpo do animal e puxou a ponta da corda que já lá se encontrava e atou-a por cima da cabeça do animal, da mesma maneira como se prende um cão, e a outra ponta atou-a solidamente à arvore e depois saiu do recinto sem que o animal desse mostras de ter acordado.
Eu estava incrédulo! Tinha visto durante uma série de vezes ele atacar com raiva quem se atrevia tentar entrar naquele espaço, como se percebesse que era um campo só dele e desta vez nem acordara. O velho disse que o pessoal que ia limpar o tanque já podia entrar, e os dois homens que esperavam para fazerem a limpeza entraram. Foi a corda que prendia o animal que evitou o ataque furioso do bicho. Bei Kassa entrou de novo e o crocodilo ficou de novo calmo e deitado como se dormisse. Depois de tudo limpo e de ter sido posto um tampão que podia ser aberto por meio de uma corda os homens saíram e Bei Kassa tirou a corda que segurava o animal saindo do local. Quando o velho caçador já estava longe o crocodilo deu um salto e desapareceu dentro de água, de onde não saiu durante dois dias.
Em conversa como velho caçador tentei perceber o que se passara e ele disse-me que possuía um segredo que vinha do seu avô e que quando ficava perto desses animais eles ficavam com medo dele.
Todas as vezes que tinha sido atacado, isso acontecera porque os crocodilos que o tinham atacado eram crocodilos que tinham vindo do mar, de fora de Timor e que mesmo assim o morderam e depois fugiram sem o matar. Em primeiro lugar não podemos ter medo pois os animais detectar logo isso, depois existem folhas e frutos com poderes mágicos que os fazem recuar. Dissera-lhe seu avô que quando os povos de Timor tinham feito o acordo de respeito mútuo e de não agressão entre eles e os crocodilos, a quem o povo trata por Bei, avô, tinham comido juntos, certos frutos e folhas para selarem esse acordo. E continuou: - Se nós usarmos esses frutos e folhas, eles lembram-se do acordo e não nos atacam.
Não podia acreditar na última parte da lenda dos crocodilos e do povo de Timor, mas aquilo que eu tinha visto teria de ter uma explicação. Disse-lhe então que todas as vezes que fosse preciso limpar o tanque eu teria de o chamar. Ficou calado, talvez pensando na chatice que isso era e depois de algum tempo disse-me: - Eu volto cá no próximo bazar, (ou seja no Domingo seguinte) e depois resolvemos o problema.
Ele cumpriu o prometido, encontrei-o do mercado e ele trouxe um embrulho feito de folhas de bananeira. Mais tarde perto do local do tanque onde o crocodilo apanhava sol ele disse-me que me trouxera um fruto e algumas folhas que fariam o Lafaek ficar sossegado. Como viu a descrença na minha cara, ele entregou-me o embrulho e aproximou-se do local onde o crocodilo se encontrava, e quando este o ia atacar ele saiu de novo. Disse-me então para eu lhe entregar o embrulho. Com ele na mão entrou de novo dentro da cerca e o animal nem se mexeu. Depois disse-me para eu entrar com o embrulho e também desta vez o crocodilo fechou os olhos e fingiu dormir. Bei Kassa disse então: - Sem medo faça cócegas debaixo do braço. – Era para ele era fácil dizer. Dominando-me fiz o que ele disse e de novo o animal levantou o corpo por ter estendido o braço. Convencido saí e guardei o que ele me tinha trazido, ouvindo a última recomendação dele: - Não dê, nem mostre isso a ninguém!
Depois disto nunca mais o vi.




"in Retalhos de uma vida em Timor"
mco