quinta-feira, 30 de julho de 2009

UMA PESCARIA EM UÉ SUSSUK


O local foi limpo e foram feitas pequenas barracas de bambu, cobertas de folhas de coqueiro, que fechavam também as paredes. Dentro desses pequenos quartos fizeram um lantém, cama, em bambu aberto e espalmado, onde se podia descansar e dormir à noite. Foram feitos dez quartos desses dentro da mata e mesmo na beira da lagoa e esse local escondido, só encontrava quem entrasse dentro do arvoredo. João limpou a sua barraca da lua-de-mel, a uns cem metros do local e onde ele tencionava ficar com Catarina. Depois de tudo estar pronto, na noite anterior João e mais alguns homens foram caçar veados e porcos-bravos, mas a carne teve que ser seca ao sol da praia, pois que o peixe encontrado, não deixava lugar a que a carne fosse consumida. Depois da chegada dos convidados que foram divididos pelas casinhas, começou a abertura da água do coilão. Os homens cavaram um cano perto do lago e quando a água começou a abrir sozinha, caminho em direcção do mar, todos se afastaram para longe, deixando que a força da água que se encontrava aprisionada empurrasse para o oceano toda a areia que se opunha à sua libertação. A enxurrada do líquido represado tornou num canal de quase cinco metros de largura, o que fora um pequeno cano da largura de uma enxada.
O estrondo do rebentar da areia, foi semelhante ao tiro de um canhão e a água saltou, levando com ela toneladas de areia, enquanto se misturava em espuma, com areia e lama, deixando um rasto da cor de café com leite, nas límpidas águas do Taci mane. Estava aberta a lagoa, e em seguida seria a pescaria.

Nos requebros da mítica Timorense nada do que tinha sido feito, ou seja a abertura do coilão e a subsequente apanha de peixe e outros crustáceos, seria possível, se na noite anterior, o Liurai de Alas, sozinho, na areia, entre as águas do mar e as do lago, não tivesse evocado os antepassados e os ancestrais avós representados no presente pelo crocodilo, pedindo-lhes que eles não tapassem a passagem e deixasse que a água do lago escoasse para o mar. Nessa noite afirmavam, os crocodilos grandes tinham saído a coberto do negrume e tinham desaparecido nas águas do oceano. Os poucos que tinham ficado eram ainda ineptos para afrontarem, as profundas e traiçoeiras águas do mar, mas ainda capazes de serem os guardiões das águas daquele coilão. De manhã, depois de a água ter saído para a imensidão do oceano, o Liurai com pecíolos da folha da palapeira em forma de pulseira, nos pés e nas mãos e também a fazer de cinto, entra na água da lagoa e vai Hamulak, rezando e explicando ao avô Lafaek que segundo o tratado entre os seus maiores, o povo não o atacará, como ele não poderá atacar o povo e o Liurai vai andando sempre, muito devagar, até chegar ao meio do coilão com água pelo peito. Aí pára e depois de breves instantes, sempre rezando, segue até ao outro lado da lagoa, de onde volta sempre a rezar para o sítio de onde partiu. Chegar ao fim são e salvo, quer dizer que as suas rezas foram aceites pelos “Avós” e então todo o povo especialmente as mulheres entram nas águas com os tais presos na cintura com um cinto de folha de palapeira, e os seios desnudos e nas mãos o dahir, rede de apanhar camarão, que é uma rede cónica fechada na base, colocada numa armação de madeira ou cana dobrada em forma de círculo. As mulheres agarram a rede com as duas mãos e usam-no, fazendo o suru boek, que quer dizer tirar o camarão da água, enquanto os homens usam o dai, tarrafa, que é uma rede maior e com chumbos nas pontas e de forma circular, que é lançada, aprisionando os peixes.

Catarina ficou estupefacta, quando viu o Liurai de Alas dentro de água e se lembrou dos crocodilos que vira em Ira Bere. Ainda que tivesse visto que nada acontecia, quando as outras mulheres a chamaram para ir com elas, Catarina preferiu ficar com o marido. De vez em quando alguma mulher dava um grito, notando-se de seguida uma turbulência nas águas. João explicou-lhe que aquele agitar das águas tinha sido feita pela passagem de um crocodilo que se encontrava escondido na lama e que fora pisado pela mulher. Mesmo assim Catarina abanava a cabeça, não acreditando no tal acordo entre o Povo de Timor e os crocodilos, nem que o lafaek fosse o avô ancestral do Timorense. Dois dias foram aproveitados pelo povo para secar no sol escaldante da praia o peixe pescado, que durante bastante tempo seria mais uma fonte de proteínas para todos. A pescaria fora um sucesso e mais uma vez se confirmava que o avô lafaek respeitava o antigo acordo feito entre os seus ancestrais e os antepassados dos habitantes de Timor.


mco

in "Timor na senda do mítico"

segunda-feira, 27 de julho de 2009

UMA LUTA ÉPICA E IMORTAL


Ao entardecer avistamos em baixo a povoação que estava toda queimada. Os meus dois tios apareceram para nos acompanhar. No meio do mato, começaram a aparecer corpos caídos cheios de sangue, de homens, mulheres e crianças. Os mais velhos faziam o possível para taparem dos nossos olhos, de todo aquele espectáculo de barbárie. Corpos retalhados de crianças como nós, jaziam pelo chão em grotescas posições, qual dança macabra num inferno de Dante. Ao entramos na povoação agora reduzida a cinzas, choros e gemidos, misturavam-se com o uivar dos cães num entardecer demoníaco. As mulheres perante este quadro de miséria e destruição abraçavam-nos chorando, com que querendo esconder dos nossos horrorizados pequenos olhos toda esta desgraça. Não sei dizer ao certo quantos mortos estariam naquele local, mas seriam certamente algumas dezenas.
Os homens encaminharam-nos para fora deste pesadelo, montanha abaixo na direcção da ribeira de “Cumain”.
Descemos sem ver o caminho a pique, como se este fosse plano e sem obstáculos, descemos até parar dentro de água e aí caímos sem forcas nem vontade de abrimos os olhos que tinham vindo fechados desde cima.
Todos chorávamos de raiva e frustração. O meu coração batia desenfreadamente, numa vão tentativa de sair pela boca. A pouco e pouco a água fria e turva da ribeira, foi-nos acalmando e então o medo, o verdadeiro e horrível medo, penetrou-me até à alma. Ainda hoje guardo na mente, esse bacanal de morte e destruição.
Os tios e avós foram-nos aquietando e levaram-nos para umas grutas feitas nas rochas – Fatuk Ku’ak – que estavam escondidas por uma vegetação espessa. A entrada era uma fresta na rocha, não sendo visível de parte exterior, porque estava muito bem camuflada.
Eram duas grutas grandes, onde a temperatura era menos agreste que no exterior e onde encontramos pela primeira vez, depois de algumas noites a dormir dentro de agua, um chão seco para podermos descansar. As mulheres preparam o local, para ser o mais cómodo possível e os homens montaram guarda lá fora.






A noite decorreu cheia de sonhos agitados, em que tudo se confundia num torvelinho de cheiro de sangue, cabeças e pés levados pelos ventos numa enorme angústia e desespero, quando acordamos, acordamos quentes e com fome. Os homens, ainda de madrugada tinham partido, subindo de novo a montanha, com a missão de enterrar os mortos. Não podíamos fazer barulho nem sequer sair para fora da gruta.
Um dia de descanso foi uma bênção para as nossas pernas e pés. A minha irmã Amena fez-me um curativo com mezinhas caseiras, feitas à base de folhas trituradas e “ai Kulit” - cascas de árvores – e eu senti-me muito melhor. A minha mãe, continuava muito doente, cheia de febre e com muitas dores, que a obrigavam a levar as noites sem dormir e a delirar. Eu passei a ficar junto dela, assim como a avó. Ela que antigamente era tão alegre, agora estava sempre triste, pouco falava e chorava às escondidas.
Estivemos escondidos nesta gruta, muito tempo, julgo que quase duas semanas. Só à noite podíamos sair sempre em pequenos grupos acompanhados pelas mulheres e aproveitávamos para tomar banho na ribeira, mas sempre em silêncio.
Os tiros que se ouviam ao longo começaram a rarear, assim com o bombardeamento feito sobre Aileu. O meu avô, resolveu que seria altura de nos deslocarmos deste local para as montanhas de Turiscai, onde, pensava ele, estaríamos mais seguros.
Um dia, depois de quase duas semanas de descanso, foi quase com alegria, que os miúdos saíram para fora da toca, para uma nova caminhada. O tempo continuava chuvoso, mas agora o sol de vez em quando, teimosamente rompia a cerrada neblina, numa tentativa de aquecer, com os seus raios luminosos a natureza enregelada. Começámos a andar na direcção da nascente da ribeira de Cumain, sempre dentro do mato e com mais precaução do que antes. O caminho era sempre subir e nós progredíamos muito devagar porque não andávamos por caminhos feitos, mas a corta-mato.



mco

in "A história de uma menina de Timor ou como Bui Terssa descobriu o mundo"

sábado, 11 de julho de 2009

MORREU O IMPERADOR DO MUNDO


Noutros tempos e sítios, que nunca mais estarão para ele e para mim, disponíveis para os podermos saborear, dizia ele em ar de bazófia “ Hei-de ser o Imperador do Mundo”. Era só prosápia pois que ele nunca foi Imperador do Mundo, mas foi aquilo que é muito difícil de ser em situações como as que ele enfrentou, um HOMEM.

Com ele terminaram os Manueis Carrascalões, pois que o era seu pai, já falecido, o foi seu filho, assassinado ainda menino-HOMEM, tirando-lhe o lugar na vingança sanhuda das drogadas milícias Indonésias.

Por ironia do destino, ele que sempre viveu no limite do perigo, morreu na cama de um hospital por motivos de saúde e idade.

Não era meu irmão, mas meu irmão foi. Aliás ele era irmão de todos os que dele necessitavam. Político clarividente e astuto, movia-se nos meandros da política com o saber que lhe vinha da experiência e do ADN da sua existência de mistura de activista anti-Salazar, de seu pai, e do instinto político-nato que todo o Timorense tem, de sua mãe.

Que mais posso escrever?
Se escrever a verdade serei severamente criticado por todos aqueles que o não conheciam. O nome Carrascalão sempre teve um estigma. Antes de conhecer a pessoa, Manuel Carrascalão, pai, já tinha ouvido a história de ele ser um “bombista”. A má fama tinha sido criada por invejas de adversários políticos, e não só, desde que o velho Manuel, pai, fora nomeado presidente da Câmara Municipal de Dili e enveredara no caminho da política local. Na realidade o Manuel Viegas Carrascalão, pai, foi em Portugal secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho, fundador da maioria dos sindicatos existentes em Portugal e deportado para Timor por Salazar, por ser anarco-sindicalista.
Em Timor fundou a Associação Comercial e Industrial de Timor, o que lhe trouxe mais inimizades. Mais tarde, quando depois do 25 de Abril, os filhos enveredaram também pela política formando a União Democrática Timorense, os inimigos políticos que agora já eram Timorenses, aproveitam a nódoa que tinha sido derramada por invejas sobre o seu nome, para criarem slogans como “latifundiários” “colonialistas”etc. etc.

Manuel Carrascalão, filho foi a cima de tudo um HOMEM valente. Sempre disse na cara dos Indonésios, especialmente dos tubarões, aquilo que pensava e dizia-o alto e em bom som, em frente de todos. As vezes que afrontou os altos poderes militares Indonésios, valeu-lhe a morte de seu filho, e de dezenas de refugiados que tinha no seu quintal em Dili.

Entre outros casos em que afrontou o poder militar do opressor, sem armas, foi quando três generais se deslocaram de Jakarta a Dili, para o acalmar por causa da morte de alguns Timorenses que eram seus trabalhadores, ele respondeu-lhes:

- “Vocês tratam-nos por “Saudara” irmão, mas é tudo mentira. Vocês são Islames e rezam antes de matarem um animal para comerem, mas para matarem um Saudara Timorense, nem depois de ele morto, vocês rezam”.

Ele já foi. Boa Viagem irmão, dá por mim, um abraço ao Manelito.

mco

domingo, 5 de julho de 2009

RAIN NA'IN

As montanhas e as planícies de Timor estão cheias de seres invisíveis para a maioria dos mortais, e esses entes influenciam definitivamente a vida dos Timorenses, fazendo parte do mítico que envolve toda esta ilha encantada.
Esses seres invisíveis que tem o nome de Rai Na’in, são os espíritos donos da terra que tanto se encontram nas árvores seculares que povoam a ilha, como em animais ou pedras e são respeitados e muitas vezes adorados pelo povo simples e ainda animista.
A presença dos “Rai Na’in” nas hortas e campos de cultivo de arroz são uma realidade do quotidiano na vida do agricultor Timorense. Estes espíritos que podem ser bons e maus são homenageados com dádivas pelos camponeses, donos das hortas e várzeas, no intuito de obterem boas colheitas, e no fim da safra como agradecimento pelas benesses recebidas.

São estes Rai Na’in que vivem nas profundezas das florestas e especialmente naquelas mais impenetráveis onde se escondem, que encarnam animais e povoam as árvores centenárias de grandes dimensões, cujas lianas caindo para o chão com a aparência de longos cabelos, nos dão a sensação de que essas árvores são mesmo moradia desses seres.
Se os agricultores estão estritamente ligados a estes espíritos, que se pode esperar dos caçadores cujas vidas são passadas no meio das florestas, onde caçam especialmente durante as noites escuras? Os animais selvagens saem dos seus esconderijos nessas noites para procurarem o alimento que não podem ter durante o dia. E é nessa escuridão que os caçadores se deslocam pé ante pé, procurando surpreendê-los com as suas flechas ou as suas azagaias.


Dizem as lendas que em noites de lua cheia os Rai Na'in que encarnam os animais selvagens dançam o tebe, dança tradicional de Timor, em locais para eles sagrados e só ao nascer do sol, tomam de novo a forma desses animais e se despedem até a nova noite de luar.




mco


"in Timor na senda do mítico"

JOÃO MALI, O CAÇADOR

A história do caçador João Mali que o livro TIMOR NA SENDA DO MÍTICO descreve, é um ensaio feito pelo autor, no campo fascinante da vida Timorense, seus mitos e temores.
Nele se retrata, além da paisagem de algumas das mais típicas e potencialmente ricas regiões deste país, a simplicidade diária da vida do povo, que por vezes se torna numa complexidade bem camuflada.
A referência a uma dos mais prementes problemas actuais, a defesa do meio ambiente e do ecossistema, representado pelo Bé Na’in da lagoa de Modo Mahut, que na realidade existe, aliás como felizmente, muitos outros espalhados por esse Timor fora, demonstra bem que muito antes de ao nível Mundial e global esses palavrões tomassem forma, já a organização tradicional da sociedade Timorense dedicava a esses problemas a sua atenção.
A crendice de que se matarmos a tuna, enguia, que existe numa nascente de água faz secar essa nascente, ainda que pareça mentira, é uma verdade incontestada em Timor.
A Lenda de que o crocodilo é o avô do Timorense, é uma outra história que nos faz pensar.
Quando se realizam pescarias em zonas infestadas por estes sáurios e depois das rezas dos Bé-Nain, onde é lembrada a aliança feita em tempos imemoriais (lenda) entre o povo de Timor e os crocodilos, o povo entra nessas lagoas a pescar não sendo atacados, são bem o exemplo da simplicidade e complexidade do mítico Timorense.
Se já conhece Timor, ou se por acaso ainda não conhece, o livro “TIMOR NA SENDA DO MÍTICO”, será uma maneira de recordar aquilo que sabe, ou de se envolver na vida quotidiana desse povo, aprendendo a amá-lo e a respeitá-lo.

Mau Lear