sábado, 10 de outubro de 2009

A PARABELLUM



Uma das primeiras famílias que conheci em Timor, mais propriamente em Dili onde fiquei colocado no meu serviço militar, foi uma das mais contestadas famílias de Timor.

O “Velho” pai, um acérrimo adversário político de Salazar, foi por isso mesmo mandado com bilhete de ida sem volta, para esta longínqua paragem, que nessa época e talvez como cópia do que a Inglaterra fizera com a Austrália, se tornou no Tarrafal dos políticos incómodos e assassinos perigosos.Em 1938, o então governador da Colónia dizia-se em situação difícil para manter 97 deportados e bastantes degredados europeus e chineses (telegrama do Governador para o Ministro das Colónias em Julho de 1938).
Um dos mais conhecidos desses degredados era o advogado Carlos Cal Brandão, deportado desde 1931, e autor do Livro "Funo" que conta um pouco da história de Timor durante a ocupação Japonesa.

Nessa família dizia eu, tornei-me bastante amigo de um dos filhos mais velhos, também de nome Manuel como o pai, que geria a plantação de café da família, no alto das montanhas de Liquiçá. Fui, desde o primeiro ano, convidado do Manuel para ir passar o tempo de Natal na frescura da sua plantação. Era, dizia ele, mais parecido com o clima do Natal na “metrópole”, e nessa altura toda a família "obrigatoriamente" se deslocava para lá.
Numa das muitas vezes que fui com ele montanha a cima, para desfrutar um pouco a diversidade do clima de Timor, aconteceu que ao fazer uma curva, a viatura conduzida pelo “Manel” se chegou de mais à berma da estrada e esta cedeu, e lá ficámos nós, com uma roda pendurada no abismo e as outras três mesmo à beira disso.
Saltei do carro e procurei salvar os meus haveres, que se encontravam na parte de trás da carrinha Nissan em que fazíamos a viagem, assim como outra bagagem mais perto e fácil de salvar, como a minha mochila e outros sacos e malas que se encontravam mais acessíveis.
Naquela aflição, o Manel encontrava-se bastante calmo ao volante do carro tocando a buzina repetidas vezes, começando então a surgir de dentro do mato que ladeava a estrada algumas pessoas para ajudar. Todos juntos com uns empurrões e umas acelerações, lá conseguimos pôr de novo a viatura na estrada.
O trabalho seguinte foi o de meter toda a bagagem de novo no carro e lá continuamos por uma estrada bastante perigosa que em alguns trechos diria que quase impraticável até à casa que ficava quase no coração da propriedade.
Se uma plantação "de café" era algo novo para mim, que só o conhecia já fumegante na chávena, a paisagem que se avistava nas traseiras daquele casarão, era estonteante, em grandeza, cor e beleza.
Dali avistava-se quase todo o vale da ribeira Lóis, as planícies de Godole e Saré, e ainda as montanhas onde estavam as plantações de Fatu Bessi, Ura Hou e o vale da ribeira Sui, que vem do vale da ribeira de Gleno.
Depois de descansarmos e de um almoço especial, demos uma volta, subindo e descendo íngremes caminhos até a uma pequena ribeira no seio da montanha onde pela primeira vez constatei a existência de pequenos camarões de água doce, a novecentos metros de altitude. Depois de uma pescaria bem animada, voltamos de novo desta vez trepando até a casa.
Estava mais que vencido pelo cansaço e emoções de um dia repleto de imprevistos, mas esse dia não tinha ainda terminado. Depois de um banho de água quente, o que em Timor não seria muito imaginável, sentámo-nos na varanda gozando um pouco o calmo entardecer em que a ausência dos mosquitos e o cheiro a húmus e à flor dos cafeeiros davam um cunho de paraíso. Esse
momento de paz e descanço foi no entanto quebrado quando chegou em frente da casa um velho timorense que transportava algo nas duas mãos como se fosse uma bandeja e grande foi o meu espanto quando reconheci a minha pistola Parabellum. Tinha-a trazido comigo, dentro da minha mochila. Ela caíra na estrada na altura em que eu tirara toda a bagagem para fora do carro.
A pistola tinha sido encontrada e as pessoas que tinham ajudado a empurrar o carro para este poder sair de posição em que se encontrava, logo discerniram que a pistola tinha que ser do “malae” que passara de manhã com o patrão “Manel”. Eu não tinha dado por falta dela, pois ainda não mexera na mochila, e desde que ela caíra até de novo voltar para o seu lugar dentro do saco, já iam mais de seis horas. Um bom susto.
Passados uns anos já no tempo do domínio Indonésio, eu e o meu amigo Manel no mesmo local onde isso acontecera, relembrando o passado, comentávamos esse acontecimento e a pergunta ficou a pairar “Se fosse hoje a pistola seria entregue?”A resposta mais provável seria:


- “Nunca mais ninguém a veria, seria mais uma arma na luta contra a Indonésia”


mco

in "Retalhos de uma vida em Timor"