quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017


MALHAS QUE O IMPÉRIO TECEU…

Para Lurdes Lino



Não sou por natureza muito dado a sonhos, dizem os poetas que o sonho comanda a vida, mas o meu sonho foi com alguém que morreu. Sobre ele escrevi em Agosto de 2008 algumas curtas palavras no paradigma de “Em Memória”. Escrevi sem ter sequer a esperança de que alguém lesse ou comentasse algo sobre esse escrito, mas mercê da visibilidade que dá o Face Book, volvidos que foram quase nove anos alguém leu e mostrou interesse em saber mais algo sobre o falecido.

A morte, dirão, é um tema tão normal, tão comum, que escrever um epitáfio sobre alguém já não é nenhuma novidade, só que o epitáfio é escrito sobre a tumba duma pessoa e geralmente começa com “Aqui Jaz…”.

No caso do meu sonho, ELE não teve direito a nenhum epitáfio, pois que, não teve também direito a nenhum túmulo, nem mesmo sei se foi enterrado em vala comum, ou se foi lançado pela encosta abaixo da montanha onde foi assassinado.

Joaquim Inês Martins de seu nome, e “cowboy Lino” de sua alcunha, foi morto quando, prisioneiro que era da Fretilin, tentou fugir, saltando de uma camioneta onde seguia de Maubisse para Same (Timor, dezembro,1975), sendo ferido de morte por um atirador, dum Jeep que acompanhava a camioneta.

Ele como outros prisioneiros seguia amarrado com as mãos atrás das costas, e, quando depois de terem dominado os guardas tentaram fugir saltando da viatura em movimento, caiu na estrada sendo abatido, enquanto que outros lograram as suas intenções. Isto foi-me contado por prisioneiros que sobreviveram, aos massacres de Aileu e Same.

Não era minha intenção escrever sobre ele nem sobre os remotos tempos dos anos de 1975 de má memória, mas o pedido de sua prima, pedindo que sobre ele fizesse uma resenha de sua vida e morte, me levaram a escrever mais do que quereria.

Chegou a Timor depois de um mês de viagem no paquete “Timor” integrado na Companhia Independente de Polícia Militar 1579, e ao fim de dois anos de comissão resolveu lá ficar.

Irrequieto, com um espírito brincalhão, e trabalhador, prosperou, com uma camioneta que por ter dispositivo de tração conseguia chegar a locais de difícil ou mesmo impossível acesso, o que além de o tornar um campeão das estradas de Timor, davam jus à sua alcunha de      cowboy.

Casou com uma rapariga chinesa que vivia em Ermera, centro de café, e como a família de sua mulher tinha uma loja de comércio, rapidamente começou vivendo desafogado tendo comprado outra camioneta e uma casa em Díli na região de Taibesse.

Quando dos acontecimentos de 11 de Agosto, (princípio da guerra civil) juntou-se às forças da UDT (partido Timorense) contra a Fretilin, e com os restantes elementos da UDT ficou na zona do Palapaço onde se situava o comando do partido. A sua casa ficava na zona de Taibesse onde se encontrava o comando da Fretilin. Numa noite temendo pela sorte da sua família, deslocou-se para lá e foi capturado.

Na prisão de Taibesse sofreu com todos os outros prisioneiros torturas e maus tratos, e quando da Invasão de Díli pelas forças Indonésias foi levado para Aileu. Lá assistiu ao assassínio de muitos prisioneiros e ele como muitos tremiam de medo quando alguns dos carrascos olhavam para eles mais fixamente, ou os seus nomes eram falados ainda que sem motivo algum.

Quando o comando da Fretilin, mercê do avanço Indonésio, se começou a deslocar para o interior de Timor, o terror dos prisioneiros aumentou.

  

Amanhecer vivo era o desejo de todos os que passavam a noite sem dormir com todos os sentidos em alarme permanente e atentos a todos os ruídos que pudessem denunciar que algum guarda bêbado os pudessem torturar, ou pior matar.

Quando o comando da Fretilin resolveu deslocar-se para Same, resolveram que os prisioneiros iriam com eles e seriam julgados num tribunal do povo. Aí todos esperavam que Same fosse o último sítio onde poderiam ter esperança de viver. Todos eles sabiam que iriam ser mortos quando lá chegassem. Todos estavam de acordo que a viagem de Aileu para Same era a última oportunidade de fugirem.  No caminho tentaram a fuga, mas ele tinha as mãos amarradas atrás das costas, estava bastante fraco e vestido com uma lipa (pano tradicional de Timor), não conseguiu equilibrar-se ao saltar da viatura e desequilibrou-se caindo no meio da estrada onde foi fuzilado por guardas que seguiam num jeep à retaguarda.

Paz à sua alma.



P.S. Eles tinham razão em tentar fugir, pois que outros prisioneiros, dezenas deles, foram mortos dentro das salas de aula da Escola Municipal de Same para onde os guardas deitaram granadas.

Estes acontecimentos foram-me contados por sobreviventes desses tempos infernais.

 mco