3 de dezembro de 2015
A MORTE DO CAPITÃO CÉSAR CANUTO EM KUPANG
Fazem hoje 49 anos que morreu em Kupang no palácio do Governador El
Tari o Capitão César Canuto
Muitas vezes as coisas acontecem de maneira fortuita e a história sofre
mudanças por motivo de imprevistos e coincidências.
Uma das famílias que desde os primeiros dias da minha permanência em
Timor se tornou minha amiga, foi uma senhora de origem Árabe cujo marido
Português de gema, ficara em Timor e lá falecera.
Essa senhora já não era nova, mas era de uma grande simpatia e para ela
a palavra amizade tinha significado. Tornámo-nos amigos e quando o trabalho me
dava alguma pausa, eu, aliás, como alguns dos meus amigos gostava de a visitar,
e por vezes, em feriados ou domingos, fazíamos petisqueiras em sua casa.
Era
uma casa tradicional bastante larga, com um grande quintal sempre muito limpo,
onde algumas mangueiras frondosas davam boa sombra e boas mangas também. A
residência dela situava-se mesmo em frente da praia.
Era uma Sexta-Feira dia 3 de Dezembro de 1966. Um almoço de cozido à
Portuguesa tinha sido combinado, para o Domingo seguinte naquele espectacular
local, a cem metros do mar e no meio de uma plantação de coqueiros que davam o
nome à praia.
Nessa noite depois de um jantar de marisco no A Seng, pequeno
restaurante cujo proprietário tinha sempre marisco muito fresco, resolvi ir a
casa dessa senhora buscar a lista dos condimentos necessários para o piquenique
já combinado.
A minha Suzuki azul de 50c.c. que eu tinha comprado a um cabo de
engenharia, estava bem afinada e depois de sair da estrada para a ribeira de
Comoro, entrava por um estreito caminho para a praia, voando nas curvas e
contracurvas de um trilho onde só cabia as rodas do velocípede, ou os pés de
qualquer ser humano.
Os requebros da vereda conjugados com os altos e baixos do terreno
davam ao percurso um sabor especial, particularmente durante a noite, quando o
negrume que nos rodeava, era cortado pela luz algumas vezes fraca, desses meios
de locomoção. Era uma gincana de morte.
Depois de lá ter chegado, um bom café de Timor, retemperou a espírito
do esforço de concentração necessário para fazer esse caminho sem nenhum
despiste e neutralizou um pouco o excesso de cerveja consumida com os mariscos
do jantar.
Aí ficámos sentados no exterior da casa, aproveitando um pouco da
frescura vinda do mar, nessa quente noite de Dezembro, enquanto o rádio, nos
fazia companhia atirando para o ar, sons que contrastavam com o ruido monótono
e repetitivo das cigarras e o coaxar das rãs que se deleitavam nos pequenos
charcos deixados pelas cuvas da tarde.
Nessa noite, no éter, para contrariar o usual programa da “Música a seu
gosto” da rádio Díli, diluía-se a música Keroncong da rádio Kupang, capital da
vizinha parte Indonésia da ilha de Timor.
Essa música segundo os entendidos é proveniente do fado, e é certamente
pela sua melodia e argumento, diferente da música tradicional destas paragens.
Dizem que os marinheiros Portugueses que chegaram e dominaram estes
mares entre 1512 e 1596 trouxeram com eles instrumentos musicais que mudaram os
sons e, portanto, a música.
Um pequeno violão cujo som era um “krong” “krong” tornou-se conhecido
pelo nome de Keroncong e deu o nome ao estilo musical, enquanto nas ilhas Hawai
tomou o nome de Ukelele. Tudo isto, eu ia aprendendo com a minha amiga,
enquanto sorvia o cafezinho e me deliciava com o ambiente morno e difuso da
noite.
Por volta das dez horas, pensava já em regressar ao meu quarto de
palapa, no seio das instalações da minha companhia, quando bruscamente os
mágicos sons musicais desapareceram, e em seu lugar uma voz bem timbrada lançou
para o ar o que parecia ser um noticiário.
A minha interlocutora chegou-se mais para a telefonia procurando não
perder nada do que era dito. Confesso que fiquei admirado pois nunca pensara
que ela falasse a língua Indonésia, e a pergunta saiu fluente e coerente: -
Você fala indonésio? Ela com um Shiuuu, perentória, cortou-me qualquer
veleidade de continuar.
Confundido com a sua atitude, e porque não compreendia aquilo que ouvia
na rádio, tomei muita atenção à sua expressão facial.
Algo se passava que a fez ficar agitada, pronunciando palavras que eu
não entendia.
Levantei-me e ela fez-me sinal para que me sentasse.
Quando depois de alguns momentos que me pareceram uma eternidade ela
falou, ela estava com uma cara aterrada.
– Mataram o capitão Canuto na residência do Governador de Kupang. Que
desgraça! vem aí a guerra.
Disse num ápice sem parar para respirar.
Acalmei-a procurando
compreender o que se passara.
Depois de breves momentos de luta contra a angustia que a dominava,
ela, que como qualquer de nós sabia que as relações entre Portugal e a
Indonésia estavam muito tensas, tentou explicar atabalhoadamente aquilo que eu
já sabia sobre a missão do capitão Canuto.
Fiz-lhe a pergunta objectiva: - A que horas aconteceu? A resposta dela
deixou-me convencido da urgência de comunicar a alguém o que se tinha passado:
- Segundo o noticiário isso aconteceu cerca das nove e meia da noite de hoje.
Disse ela.
Disse-lhe que continuasse a ouvir as notícias que eu voltaria e pegando
no meu cavalo de 50 c.c. voei direito à casa do meu comandante. Quando saí
acelerado de casa ainda a ouvir dizer verdadeiramente aterrada: - Eles dizem
que ele se suicidou, mas foram eles que o mataram.
O capitão Canuto acompanhado de um sargento Timorense tinha ido com a
missão de receber três militares Portugueses, que haviam debaixo de uma grande
bebedeira, entrado num beiro sem remos e sido arrastados pela corrente para uma
ilha Indonésia onde ficaram presos.
Nessa altura na Indonésia ocorria uma revolução e eles foram julgados
espiões, mas por fim a Indonésia passada esse momento de guerra interna
devolvia os militares a Portugal.
Conforme histórias que corriam e eu apenas relato o que todos falavam
que o Capitão tinha partido com receio pois que ele era o comandante do Centro
Cripto do Comando Militar de Timor, o que equivale dizer que era conhecedor de
segredos militares, e poderia ser considerado pelos Indonésios como um espião,
ou mesmo tentarem tirar dele informações dos serviços que comandava.
O acontecimento não teve consequências de maior para a Província. O
governo de Kupang entregou o corpo do Capitão ao governo de Timor. Os militares
Portugueses presos em Jakarta foram entregues na fronteira a uma patrulha da
Polícia Militar Portuguesa.
Sobre a autópsia do capitão Canuto, nada transpirou de oficial para o
domínio público, mas nas varandas corridas de Timor onde os mosquitos
rivalizavam com a má língua, dizia-se que a autópsia do capitão determinara que
o tiro tinha entrado na cabeça dele, detrás para a frente e de cima para baixo,
posição bastante incómoda para quem se quer suicidar
mco