domingo, 16 de dezembro de 2007

COMO CONSEGUI FUGIR DA GUERRA



Nesta época Natalícia seria talvez mais apropriado um conto sobre o Natal em Timor, mas apesar das estrelas encherem de luz a noite sagrada e as vozes de alguns ainda cantarem as Aleluias ao DEUS menino nascido nas palhas de um curral, a verdade é que sem neve na natureza, apenas no coração de alguns, e especialmente com os campos de refugiados cheios de crianças sofredoras, todos os contos de Natal em Timor serão forçosamente mentira.
Faço por isso uma pequena transcrição de um texto sobre uma cidade de Dili que já se habituou desde longos anos a ser uma terra de sofrimento (Agosto 1975).
Mau Lear


Saí no lado oposto na ponte de cais, junto do antigo centro náutico, onde extenuado e desgostoso me deitei na areia, sentindo ser impossível alcançar o meu objectivo....................................................................................................................................
O ranger da areia debaixo de pés calçado por grossas botas da tropa acordaram-me sobressaltado. Tentei num movimento instintivo fugir mas logo umas mãos poderosas me alcançaram e num instante fui imobilizado e deitado de novo na areia.
Ainda sem compreender o que se passava nem onde estava, ouvi alguém perguntar em Português correcto o que fazia eu ali deitado. A pouco e pouco o cérebro começou a funcionar e recordei-me então de tudo o que se passara. A escuridão dizia-me que ainda era de noite. De novo me senti arrastado desta vez no sentido vertical e dei comigo com dois militares Portugueses, que me perguntaram outra vez o que fazia eu ali.
Aquela área era, soube mais tarde, área de segurança da residência do Governador Português que se tinha mudado de armas e bagagens para perto do porto de cais, por estratégia, ou por estar mais perto do Ataúro, pensei eu. De qualquer maneira fui bem interrogado pelos pára-quedistas que me tinham aprisionado e que depois de me ouvirem, me prometeram que no dia seguinte eles próprios me iriam levar à ponte de cais.
Pela atitude destes militares, senti que dentro deles existia uma revolta surda por tudo aquilo que se passava em Timor, e tristemente, comentaram que tinham saído da Guiné com o apoio das populações, mas que de Timor teriam que sair debaixo de uma guerra civil que poderia ter sido evitada.
Enfim o “Transatlântico” estava começando a mover-se, devagar, mas com firmeza, na direcção da Indonésia. Acho que eles sabiam disso.
No dia seguinte, pela manhã, depois de abastecido com algumas rações de combate, oferecidas pelos meus captores, fui acompanhado por dois pára-quedistas até ao portão da ponte de cais, aonde grupos armados das duas facções em demanda, se mantinham alerta para não deixarem embarcar líderes e outros responsáveis dos partidos em questão. Por eu ser ainda jovem começaram a por entraves à minha entrada aí, mas a presença dos dois militares Portugueses acabaram por me abrir as portas para eu poder entrar.
Despedi-me dos meus anjos salvadores, com um longo adeus, enquanto eles voltavam para junto da área restrita da nova residência do Governador.
Quanto ao grupo que eu tinha deixado para trás, eles tentaram passar, mas uma das senhoras foi atingida numa perna por uma bala de ricochete, com medo desistiram e teriam voltado, se por acaso a ambulância que transportara a ferida para o hospital militar, os não tivessem transportado também até à ponte de cais.
Como o grupo era composto somente por velhos, mulheres e crianças foram autorizados a entrar e juntaram-se a mim na esperança por melhores dias.

Dili vista da ponte de cais, era uma antítese daquilo que eu tinha conhecido. Os ventos das montanhas circundantes, traziam gemidos e cheiros pútridos de carne queimada e em decomposição. Os ventos de Agosto, traziam pela noite, o hálito acre dos incêndios, aos quais se juntavam os clarões das explosões, dando a sensação de que se iria concretizar as palavras dum dos dirigentes dos partidos em guerra “se for preciso arrasa-se Dili, e edifica-se depois uma cidade de palapa”.

O que mais me horrorizava era sem dúvida os cheiros, principalmente os de putrefacção. Durante três dias não consegui comer nada, pois que o meu estômago negava-se, contorcendo-se em espasmos, a receber qualquer forma de sustento. Nos momentos mais lúcidos da prostração em que caí, os odores traziam à minha mente dorida um passado recente, quando eles, eram habituais para mim. Aí todo o meu ser se agitava, e as minhas entranhas convulsas deitavam fora, somente espasmos, pois que mais nada havia para verter. O esforço deixava-me de novo prostrado.
Eu pensava já não sobreviver à debilidade do meu corpo, mas, eis que vindo do fim imaginário do mar, um ponto negro se dilatou, ficando cada vez maior, até se transformar num navio.
Seria a Nau Catrineta? A minha mente imaginava a história aprendida na quarta classe, da Nau Catrineta e tudo se confundia misturando o real com o ilusório, e eu na minha loucura, rezava, Pai-Nosso, Ave-Maria, Pai Nosso, Ave-Maria, Pai-Nosso, Ave-Maria…




“in Buan”


mco

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