domingo, 23 de setembro de 2007

A cidade de Dili dos anos sessenta




Peco desculpa se não é esta a Dili que conhecem. A visão que vos apresento é muito pessoal e refere-se a um quadro muito querido de algo que passou, e não mais voltara. Foi a cidade onde me fiz homem, onde os grandes momentos bons e maus da minha vida, tiveram lugar, onde morri e nasci mil vezes, num imaginário de amor recortado por momentos de ciúmes ódios e mesquinhas vinganças. Aqui me realizei como ser humano e algumas vezes desumano. Dili é o coração da minha existência.




A cidade foi para mim um assombro. O Senhor padre entregou-me em casa do meu padrinho. A casa ficava situada no Vale de Lahane e encontrava-se situada a meia encosta donde se via o mar e Dili por baixo. Os meus olhos procuravam avidamente abarcar tudo de uma vez e nos dois dias seguintes fiquei observando cada pormenor do horizonte que se podia lobrigar da varanda da casa. Os filhos do meu padrinho bem me desafiaram para ir passear com eles, mas a metamorfose que a minha vida tinha sofrido, fora muito rápida e os medos acumulados ao longo de anos ainda não tinham sido debelados e reflectiam-se no meu dia a dia.



Percorri Dili de lés-a-lés e ficava cada vez mais maravilhado com o que descobria. A cidade era muito limpa e cuidada. Os quintais e jardins bastante arranjados e tinha um grande movimento nas ruas, onde os soldados Portugueses, se cruzavam com Timores,
Chinas e Árabes numa perfeita simbiose rácica.

Era a gloriosa Dili, onde uns atropelavam e outros eram atropelados, onde uns vendiam e outros compravam, onde uns andavam calçados e outros descalços, onde a cor da pele ia do amarelo ao branco passando pelo chocolate e café com leite, onde os olhos de amêndoa eram os verdadeiros senhores feudais, disfarçados de vendedores, onde os olhos sonhadores das sereias, trocavam promessas de noites tropicais com os olhos sempre ávidos dos Malais, * onde a brisa quente das noites, trazia suavemente as vibrações da “Música a seu gosto”* ouvida em todos os rádios espalhados pela capital e não só, com promessas lúbricas, dirigidas à “estrela do oriente”* ou a outra estrela qualquer, tudo isto, bem misturado com os Jack Pott* no Amadeu Coelho, as vozes gritadas do Teixeirinha ou Roberto Carlos que saíam por entre as frestas das palapas da Colmera e se esvaíam no éter morno e cheiroso a Laco.*
Para acabar tínhamos ainda a má língua das varandas corridas, as Kore Metan, * o pó das ruas, o calor, o som rouco e melodioso do violino do Abril Metan* e os mosquitos.

Dili era mesmo especial.

Ao fim de um mês eu conhecia bem o pulsar da vida da cidade. Da varanda da casa local que eu escolhera para estudar, podia ver e sentir que a cidade tinha um coração que palpitava aceleradamente, desde a manhã até que à noite cansada se rendia.
Depois da meia-noite, só algum noctívago quiçá bem etilizado se aventuraria a roubar a noite às Pontianas, seres maléficos que apresentavam aspecto lindo de mulher com longos vestidos até aos pés, para ocultar que estes não assentavam no chão e que deslizavam somente
Elas enganavam os homens e aqueles que fossem no seu engodo, iam de certeza parar ao inferno. Eu à noite não saia de casa depois do criado do meu padrinho o Júlio me ter posto a par destes seres e dos espíritos, donos da terra “Rai Nain” que se refugiavam nos milenários gondões, da estrada de Balide, de grandes lianas pendentes a roçarem o chão.



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* Malais, – Aportuguesamento da palavra Malai que significa estrangeiro, fazendo plural. Neste caso Malais que são os soldados Portugueses.

* “Música a seu gosto” – Programa da rádio de Dili com grande audição em todo o território, onde se dedicavam músicas.

*“Estrela do oriente” – Era uma das mais famosas dedicatórias do programa “Música a seu gosto”

*Jack Pott – Máquinas de Jogo, de uma casa aberta no antigo café do Amadeu Coelho.

*Laco – Aportuguesamento da palavra (Tetum) Laku, nome dado a um pequeno animal, parecido a uma raposa, com um cheiro muito próprio (Paradoxurus musanga).

*Kore Metan – Festa para tirar o luto, feita ao fim dum ano, geralmente com jantar e baile, além da prática religiosa.

*Abril Metan – Antigo tocador de violino, mestiço de origem Africana, talvez descendente das tropas Landins, que tinha o mais célebre conjunto para tocar em festas e nas Kore Metan.


(in “Buan”)

mco